Indigo : Black Sabbath

Cid Moreira encerrou o noticiário com um "Boa Noite" mais fúnebre que o usual. Lembrei do que Heitor havia me dito naquela tarde. "Repara na mancha na testa dele. é o sinal da besta." Disso Heitor entendia. Todas os dias, depois do colégio, estudava os discos do Black Sabbath, ouvindo-os de trás para frente.Era primavera na Rússia, de modo que Gorbatchov já havia guardado sua boina de pele de castor no fundo do armário.
Fui assistir mamãe se produzir para mais uma festa. Era desconsertante vê-la assim, com um olho pintado e outro não. Me lembrava do veloz processo de degeneração que Tati, uma habitante de regiões mais remotas, como Pindorama, iria sofrer. Com aqueles pincéis, sombras, lápis e rímel, ela era senhora do tempo. Bem, até onde isso era possível. Pensava no que lhe dizer caso não nos víssemos na manhã seguinte, mas não queria estragar sua festa.
Sempre foi uma casa silenciosa, pois papai não gostava de barulho. Desliga essa televisão, abaixa esse som, porta do quarto fechada e nada de gritaria. Ainda bem que seu pai só teve duas meninas, ele detesta bagunça. Assim, fui mais menina que uma menina precisa ser. Até nas raras ocasiões em que ele chegava a gritar, gritava baixo, tão baixinho que sussurrava. à noite era apenas as cigarras que se ouvia. Esse canto delas me trás uma paz tão boa, dizia vovó. A mim parecia mais um grito suicida de despedida à vida. Heitor mesmo contou que quando elas cantavam assim é porque estavam para morrer. "Cantam até estourar. Tipo auto-combustão."

Acordava surpresa por ter sobrevivido mais uma noite. Corria até o quarto da Flávia e me enfiava debaixo da suas cobertas, que na verdade era uma tenda árabe.
Então mamãe aparecia e com suas enormes unhas vermelhas destruía nosso abrigo, puxava os lençóis e nos atacava com cócegas.

Realmente, o homem trazia uma mancha vermelha na fronte. Pelos últimos acontecimentos, era questão de dias e o mundo acabaria numa guerra nuclear. Eu já não dormia mais, temendo acordar fritando, pois era exatamente essa a sensação da radioatividade penetrando pelos poros. Estava aflita, e pelo jeito, Cid também. Enquanto uma menor de idade na América Latina, e o que era pior, em Campinas, não tinha muito o que eu pudesse fazer.

Talvez ela estivesse certa, se estamos para morrer, que fosse numa festa. Flávia, por sua tenra idade e incompreensão do perigo iminente, ainda tinha um sono pesado. Como o ponto X era na praça da República em São Paulo, de Campinas não se ouviria o barulho da explosão. Quanto muito veríamos uma radioatividadezinha passando por debaixo da porta, como neblina verde-neon. "Mãe, quando você acha que estoura a guerra?" "Ninguém sabe." "Mas quem você acha que vai apertar o botão primeiro." "Qualquer um. Vá dormir pituquinha."
Sempre foi uma casa silenciosa, pois papai não gostava de barulho. Desliga essa televisão, abaixa esse som, porta do quarto fechada e nada de gritaria. Ainda bem que seu pai só teve duas meninas, ele detesta bagunça. Assim, fui mais menina que uma menina precisa ser. Até nas raras ocasiões em que ele chegava a gritar, gritava baixo, tão baixinho que sussurrava. à noite era apenas as cigarras que se ouvia. Esse canto delas me trás uma paz tão boa, dizia vovó. A mim parecia mais um grito suicida de despedida à vida. Heitor mesmo contou que quando elas cantavam assim é porque estavam para morrer. "Cantam até estourar. Tipo auto-combustão."
Parava apenas quando nos encontrávamos a ponto de sufocar por falta de ar. O dia corria tranqüilamente até a noite, quando mais uma vez, tomava um cantinho do sofá para meu encontro com Cid. Nós sabíamos. Ele porque trabalhava com isso. Eu porque, bem, com a ajuda de Heitor interpretava os acontecimentos. Estava tudo ali, nos discos do Black Sabbath.

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