Ao vencedor, Nova Iorque.
Por Bruna Gagliardi


“É meio-dia em nossa vida, e a face do outro nos contempla como um enigma”.
Hélio Pellegrino



Não era sempre que um consultor acionário dava-se ao trabalho de deslocar-se, de modo descendente, tendo como destino derradeiro o mercado popular. Principalmente quando se tratava de Richard J. S. Lane, gerente de poderes múltiplos do City Bank (matriz, veja bem), e quando dado mercado localizava-se em Nova Iorque. Também não era de todo comum que garotas de longos e parcamente lavados cabelos arrastassem meia hora de caudas indianas ladeira acima até o mercado central. Elas estavam em extinção, “Hair” já tinha até passado na sessão da tarde de países sul-americanos. Mas lá caminhava Sue, no mar de Licenças.

O elevador gemeu e Richard chegou à terra. O estômago reclamava, até as taxas de câmbio pareciam-lhe apetitosas. Na rua, uma onda que oscilava como a oferta, a procura e o Baked Potato, Mas que idéia ótima. Olhou uma última vez pro pulso e Não, a reunião tinha sido mesmo cancelada e, Sim, a Coréia estava estável.

De fato, era uma loucura plantar batatas em Nova Iorque, embora alfaces orgânicas fossem bico. Não que o interrompido curso de sociologia aplicada houvesse munido Sue para tanto. O jeito era entregar-se às práticas do mundo, trocar algumas moedas por poucas batatas e fazer o tal do purê. Richard fazia o cheque. Fazia outras coisas também, tipo jogar squash três vezes por semana. Aos 16, já freqüentava Harvard, aos 18, conseguira uma vaga no trainee de Finanças, aos 21 abraçara a causa da Bolsa - embora não soubesse bem valores de quem fossem aqueles - e, aos 23, ele já era para o resto da vida. Agora, ali no mercado, pensava em quando mesmo tinha se apaixonado por Adam Smiths.

Smiths era um som maneiro, Sue curtia. Embora Doors fosse mais esquema. Não ouvia propriamente nenhum dos dois desde que a luz da comunidade tinha sido cortada, logo depois dos protestos contra energia nuclear que o pessoal tinha agitado. Ouvia no violão, sob o luar nova-iorquino que era Algo.

O previsto era que se encontrassem a qualquer instante, o que então aconteceu quando o sol estava a pino. Sue viu Richard. Viu também aquela gravata yuppie e - estranho - achou meiga. Em Richard subiu uma vontade súbita de comer pipoca assistindo filme de locadora: ele viu Sue. Foi este um tempo ínfimo em que os olhares estacaram, e ele pediu Licença, por favor, e uma informação, Eu estou procurando um restaurante de batatas assadas. Sue não sabia muito, porém emendou, Já eu procuro uma quitanda delas. Richard fez Ah, cara de quem-não-tinha-a-menor. Pensaram juntos em como eram raras as batatas nesse mundo cão.

E se olharam novamente. O mar de cabeças havia sumido e as Licenças estranhamente silenciadas. Quando eram pessoas pequenas, ficavam tentando achar formas humanas nas nuvens e não entendiam como o horizonte, essa linha fininha, era capaz de suportar céu e mar de uma vez só.

Julgaram, por fim, que estivessem procurando coisas distintas.

Richard abaixou a cabeça, soltou a gravata e bagunçou um pouco aquele cabelo-gel: agradeceu e continuou descendo. Sue denadou, subiu um pouco a saia que trupicava no pé e foi subindo. Passou-lhe rapidamente pela cabeça comprar um shampoo, idéia alienígena que logo a abandou. Dos extremos do mercado, se olharam pela terceira vez. E assim foram diminuindo.

No crepúsculo, o mercado já estava quieto. Caixas e ferros no chão, vendedores se recolhendo, sujeira em volta e um mendigo. Um mendigo, que perambulava e espreitava os últimos transcorreres da grande metrópole no lusco-fusco, contava trocos. Ele levantou os olhos quando o céu desbotava os lados e o percurso tropeçou na fachada de um estabelecimento comercial, sob os escritos “Baked Potato”. Mas era cubano, só sabia o significado de potato. Foi então que o último quitandeiro passou por ele. Eu fome, murmurou por entre os farrapos. O homem de bigodes vasculhou a cesta dos left-overs e achou lá uma última batata, solitária ela era. Um pouco amassada, canto podre. E estendeu-lhe a leguminosa, que ele recebeu de muito bom grado. E foi saindo. Assim: como quem sai do palco muito, muito após os aplausos.



Bruna Gagliardi




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